quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O CAOS DO JOGO

Coloco aqui um pequeno texto retirado do livro do professor Paulo Cunha e Silva, chamado O lugar do corpo - Elementos para uma cartografia fractal - Editora Instituto Piaget - 1999 - Portugal.

A principio este livro não é sobre futebol, porém coloco este pequeno texto e pergunto: Este livro também não é sobre futebol?

É uma das referências bibliográficas do professor Jorge Maciel em seu livro, inclusive citado muitas vezes e até mesmo entrevistado pelo mesmo na sua obra. Muitos dos termos e conceitos citados na entrevista com Jorge Maciel podem ser vistos e entendidos mais a fundo neste livro.

Grande abraço a todos.
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O caos do jogo

Na perspectiva de Elias e Dunning o jogo é um acontecimento que decorre na convergência de várias polaridades. Destacam-se as seguintes: "a polaridade global entre duas eguipas ou indivíduos; a polaridade entre ataque e defesa; a polaridade entre cooperação e tensão entre duas equipas ou indivíduos; a polaridade e tensão dentro de cada equipa; a polaridade entre o controle externo sobre os jogadores e o controle flexível que eles próprios sobre si exercem; a polaridade entre o interesse dos jogadores e o interesse dos espectadores; a polaridade entre o interesse dos jogadores e espectadores, por um lado, e o interesse das autoridades e dos legisladores, por outro; a polaridade entre aborrecimento e violência (etc.)" (Dunning, 1994).

Juntam-se a estas polaridades, de natureza psicossociológica, as polaridades de natureza biológica que têm que ver com a condição física que os jogadores apresentam e, ainda, as múltiplas polaridades que se abrem dentro de cada polaridade.

O jogo, além de ser um acontecimento "particularmente sensível às condições iniciais", ou seja, um acontecimento caótico para cada polaridade, sendo uma acontecimento multipolar vê agravada essa sensibilidade, até porque, como refere o autor, as diferentes polaridades são interdependentes -"(..) no sentido em gue pequenas alterações em qualquer uma delas podem ter efeitos ramificados em todas as outras" (ibid.).

De certa forma, podemos dizer que o jogo se comporta como uma série fractal muito apertada, um concentrado de fractal. Cada polaridade introduz um nova bifurcação que entronca na árvore fractal, mas como as polaridades acontecem numa vizinhança muito íntima, ou mesmo simultaneamente, deparamos com uma árvore que nasce totalmente ramificada.

Ao admitirmos um joqo como um sistema dinâmico não-linear, ou seja, um sistema cujo comportamento varia não-linearmente com o tempo, admitimos facilmente que o resultado depende da forma como se joga, como se vai jogando. Mas esta dependência, por sua vez, altera as regras do jogo, porque o contributo da incerteza, do acaso, se incompatibiliza crescentemente com qualquer regra.

Se, por hipótese, fosse possível propor uma equação que acompanhasse o desenvolvimento do jogo (e sendo esta uma equação não-linear, como é o caso da equação de Navier-Stokes para a mecânica de fluidos), a solução só faria sentido para o momento imediatamente a seguir ao momento da entrada dos dados (von Neumann, 1963). Porque jogar, assinala Bateson, é mais do que "um acto ou uma acção (...), é uma estrutura para a acção" (1987, p. 126). É a "bacia de atracção" dentro da qual se probabilizam as ocorrências. Assim, a previsibilidade terá a oportunidade do instante. Para os instantes sequintes a imensidão de soluções possíveis e a complexidade do cálculo desmobilizariam o matemático mais dedicado. Como diz Gleick, "(...) analisar o comportamento de uma equação não-linear é como avançar através de um labirinto cujas paredes se rearranjam a si mesmas por cada passo que é dado" (1989, p. 50).

É claro que não existe treinador (pelo menos treinador determinista) que no seu íntimo não pretenda ser o "deus de Laplace" - conseguir prever com uma certeza infinitesimal a evolução do jogo, controlar esse sistema multivariável. Por isso, talvez ele preferisse substituir a variabilidade pela estereotipia, na expectativa de que as atitudes dos seus jogadores fossem previstas e articuladas com a máxima certeza, de que as propriedades topológicas do movimento que eles manifestam fossem as menos variáveis.

Ele deve, no entanto, aperceber-se que a máxima estereotipia, correspondendo à mínima variabilidade, corresponde, também, à mínima adaptabilidade - que é a característica definidora de habilidade (como performance motora) (Newell et ai., 1993). Dessa forma, "o novo" que jogo proporciona seria sempre um desastre para o jogador.

É ao treinador, e neste contexto, mais vantajoso admitir que tal aspiração, em tempos de caosificação, é difícil de concretizar, e mais sequro será situar as suas estratégias dentro do "bacia de atracção" que as leis do caos definem.

"O aleatório é um companheiro da certeza" (Conde, 1993, p. 75). O que a evolução biológica com as suas estratégias variantes, como metáfora da evolução do jogo, demonstra à saciedade: há uma interacção permanente entre a mutação espontânea e a selecção natural (Arber, 1994), entre a jogada e a sua eficácia, o que define a natureza fractal da alteração evolutiva. A evolução biológica não progride numa direcção específica, vai progredindo, como o jogo, na medida da eficácia das suas soluções, das sua jogadas. Para mais, sendo o jogo uma sequência de sequências, um tempo que se funda no cruzamento de vários tempos, é de admitir, com Bateson, que essa "(...) sequência só possa ser joqada enquanto retiver alguns elementos criativos e inesperados. Se a sequência for totalmente conhecida, trata-se de um ritual (...)" (Bateson, 1987, p. 124).

O facto da sequência do jogo decorrer numa perspectiva caológica permite utilizar o jogo para entender outras sequências caóticas. É o que se passa quando em genética molecular se recorre a uma técnica designada por "representação do jogo do caos" (CGR - "Chaos Game Representation").

Essa técnica permite reconhecer padrões nas sequências nucleotídicas de determinados genes através da análise fractal dessas sequências, isto é, a partir da verificação de permanências na exibição da variabilidade sequencial (Dutta e Das, 1992). Por isso, se esta nova abordagem fornece uma perspectiva holística da sequência visual do DNA bastante diferente do tradicional arranjo linear dos nucleótidos (Hill et ai. 1992), também demonstra a especificidade local de determinados padrões (Jeffrey, 1990).

O jogador é uma entidade "hermético-dinâmica", para usar a expressão de Conde (1993, p. 72), pois oscila entre atitudes de "fechamento" e de "abertura". Ele desdobra o território (o campo) em "pregas" gue se desdobram em "pregas" - no sentido leibniziano (Leinbiz, ed. 1967; Deleuze, 1988) - e preenche esta dimensão fractal com a criatividade do gesto, da sua actividade motora. Ele guebra a "temporalidade linear" e faz daguele tempo um tempo de múltiplos possíveis. Além disso, estabelece uma homotetia com a sua eguipa. Há uma autossemelhança (pelo menos nos propósitos) gue ultrapassa as escalas: todos os níveis de subcorpos que constituem o corpo da eguipa estão empenhados no mesmo objectivo: ganhar.

Uma eguipa é um corpo complexo em qualguer dos níveis de organização abordados: do subcelular, passando pela actividade motora, até à intersubjectividade em campo. É vantajoso gue os processos de treino se habituem a conviver com a variabilidade gue resulta desta circunstância, e a fazer dela uma força suplementar, em vez de a tentar esconjurar. 0 elemento relacional, comunicacional, é mais importante do que as mais valias individuais, e esse elemento só se manifesta num quadro que ultrapasse formatos impositivos.

Mas depois de tudo isto é também óbvio que se não houvesse qualguer coisa que ligasse o jogo a um território de possíveis previsíveis, deixaria de fazer sentido insistir-se e investir-se no futuro, na preparação de uma eguipa. No fundo, o treinador sabe que, embora não seja o deus de Laplace, há um atractor que condiciona este sistema multipolar, multivariável, dinâmico, não-linear, complexo, fractal, a um território de confiança, legitimando os seus investimentos. E a última polaridade que aqui se joga é aquela que se situa entre o caos e o determinismo.

Será concerteza por isso que Ito e Gunji ao procurarem uma automação celular que mimetizasse a vida a designaram por "Jogo da Vida" (1992). De facto a vida joga-se na fronteira entre o caos e a ordem. É aí que se encontra o desequilíbrio permanente capaz de criar estrutura a partir dos mecanismos de auto-organização dos sistemas complexos. É pois provável que na vida, como no jogo, a possibilidade de estratégias e escolhas tácticas esteja limitada a uma organização multifractal e a uma atracção caótica que restringe as opções evolutivas e indicia um princípio universal (ainda que um princípio fluido, um princípio de princípios) para a morfogénese dos sistemas naturais (Blazsek, 1992) - e isto da vida ao jogo, ou seja, da vida à vida.

Agora já podemos dizer que o jogo é um dos exemplos mais eloquentes do "caos determinista".
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